domingo, 11 de maio de 2008

Acostumados


A Sra. Francisca da Silva habita na Fonte de Baixo, típico bairro lusitano, soalheiro durante o dia e pacato e silencioso desde o adormecer do sol. Esposa de Custódio Sousa e progenitora de oito crias, sendo seis valentes homens e duas mulheres. A dona Francisca é assídua na paróquia e pontual “à sagrada missinha das sete” e, possui, tal como todas as ancestrais fêmeas da sua família um bom fogão de lenha à antiga. Neste, orgulha-se de preparar todos os dias da semana a comidinha tradicional para os seus santos filhos. É uma mãe extremosa, de facto. Trigueira e boa mulher só quer é olhar pela vidinha dela e que Deus a ampare.
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E foi assim que retratei a dona Francisca quando ia almoçar à minha avó, também moradora da Fonte de Baixo. Encarava-a como uma santa mulher e, elevava-a a este patamar pois achava os seus feitos divinos. Espantava-me a dedicação desta ao cozinhar diariamente e alimentar oito bocas, sem contabilizar seus netos. Alegrava-me ver todo aquele panorama familiar tão rotineiro e feliz, realmente só comparável aos da televisão. E todo este meu deslumbramento pela D. Francisca da Silva durou até ao dia em que a avó rompeu pela casa exaltada e furiosa, derrubando todas as coisas inanimadas e rogando pragas a D. Francisca, ao mesmo tempo que pedia ajuda às alminhas e invocava o nome de todos os santos padroeiros.
Eis o que se havia passado, a avó era cliente habitual e certa da mercearia do Sr. Custódio e da D. Francisca. Tinha por hábito fazer as suas compras e pagar no final do mês. O Sr. Custódio apontava no seu caderno as despesas e, no findar do mês lá se faziam as contas. Ora havia chegado justamente o fim do mês e a avó, como mulher séria que o é, fora à mercearia pagar as suas dívidas. Foi quando se deparou com um valor elevadíssimo, o qual ela não podia saldar. Pediu justificações à sua comadre Francisca que se mostrou indignada ao se aperceber da desconfiança da avó. E foi uma peixaria de tal ordem lá no bairro que até os peixinhos do rio Cávado desataram numa correria para só parar nas águas calmas de Esposende.
E, fora entre soluços, lágrimas, brandos e vocativos da minha avó, que eu me apercebera do lado obscuro, sombrio e obtuso da vida da dona Francisca da Silva. Era tudo como um bonito romance ao qual faltavam os singelos e verdadeiros capítulos quotidianos. O véu caiu, e ali ficou a imagem nua/real daquela mulher/deusa que roubava os clientes, elaborava e discutia histórias da vida dos outros, as coscuvilhices. Aquela mãe extremosa que cozinhava para os seus filhos, achando-se assim no direito de criticar, a ponto de dissipar os matrimónios. Esta fêmea animalesca que usava invocar o nome do Supremo para eufemizar e lavar seus pecados.
Confesso que todo este turbilhão de personalidades e carácter me deixou confusa, parei e revelei-me apática por instantes. Nesse momento, iluminou-me o foco de relações que coexistem, não só no bairro da Fonte de Baixo, mas que se expandem por todo o território português.
É de notar que Portugal está atrasado economicamente, apresenta altas taxas de envelhecimento da população, alarma graves falhas na educação e está privado de um bom sistema judicial. E toda esta situação porque Portugal vive numa constante analepse.
A familiaridade com o mar, os descobrimentos, as batalhas bem sucedidas e o prestígio inigualável continuam a iludir os portugueses numa hipnose contínua de que Portugal é a mesma terra que terá sido outrora. É-nos sistemático e característico o adiamento dos problemas. Afinal, cremos nós, enquanto o brilho do ouro ainda reluzir nas nossas pupilas, podemos continuar a comprar tudo feito e a importar todo o luxo digno desta terra lusa.
É vital para o desenvolvimento de Portugal o alargamento de horizontes e, quando digo horizontes, estou também a referir-me à própria abertura da nossa mente. É altura deste revestimento beato cair, pois quer sejamos católicos, judeus ou budistas, somo-lo em todo o Mundo. É-nos pejorativa esta religiosidade extrema que achamos ser comprovada através de romarias, procissões ou mesmo festas paroquianas. E igualmente pecaminosos são esses padres varões que tilintam o dinheiro dos fiéis nos seus bolsos. Rolamos assim, num ciclo sem terminação onde a corrupção é arbitrária e exponencial. A meu ver, reflectir sobre assunto já não é remédio, pensar não leva a resultados concretos e divagar é ausente de soluções. A terra implora-nos que ergamos convicções e sigamos por um trilho vitorioso, traduzindo por miúdos: vamos devolver a este prodígio fértil e ameno toda a vida dançante que efervescemos.
Ergamos o avô da poltrona, expulsemos a avó do tanque e revolucionemos com estes guerreiros adormecidos um 25 de Abril que reorganize ideais, extinga corrupções e que, essencialmente, “tranque” estrangeirismos, beatices e políticas desorganizadas. Libertando, deste modo, uma recém alma lusa.



Mariana Lomba, 11ºE

1 comentário:

Fátima Inácio Gomes disse...

Muito bom, Mariana! Especialmente a parte inicial, de enquadramento em situação, deu-lhe um encanto particular :D