sábado, 18 de outubro de 2008

Se depois de eu morrer


Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Alberto Caeiro,

P.S.:

"Alberto Caeiro é considerado o mestre dos heterónimos de Fernando Pessoa, apesar da sua pouca instrução.

Foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão. Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. Apresenta-se como um simples "guardador de rebanhos" que só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade." - in Wikipedia


Como ainda sou um iniciante a conhecer Fernando Pessoa, não conhecia este heterónimo de Fernando Pessoa. Conhecia o nome, de o ter ouvido algures, mas não sabia que era um heterónimo. Assim, naveguando na net, procurei informaçoes sobre este heterónimo de Pessoa. Até porque esta obra já eu conhecia, e a primeira estrofe é uma daquelas que nos cativa, pois só um grande génio teria a proeza de fazer com que poucas frases conseguissem descrever tanto. E agora que conhecemos o Universo de Pessoa, é-nos possível entender melhor esta linguagem e sentimento. A escrita deste poema é bem acessível e possibilita uma grande compreensão - só coloquei a informação adicional para ser possível entender melhor o porquê de o sujeito poético excluir o pensamento. Acho que se tivessemos que analisar este poema, teríamos muito por onde lhe pegar (pois é como disse acima). Caeiro confessa um grande afecto à Natureza com uma linguagem suave e simples, mas que, se interpretada, mostra a sua verdadeira dimensão: O não pensar... Agir sem pensar para compreender e observar a verdadeira complexidade da Natureza. É como contemplar uma bela paisagem. Quando a vemos, é como um regalo para os olhos, mas se a começarmos a comparar com umas que já tenhamos visto, depressa perde o encanto que possuia. Talvez por se apresentar como um Guardador de Rebanhos, Caeiro apresente o seu forte afecto para com a Natureza, pois são os olhos mais humildes os únicos capazes de ver as coisas mais insignificantes para o homem, e são os únicos a dar valor às mais pequenas coisas. E eu acho que este é o caso de Caeiro.


Não posso perder a oportunidade de falar da estrofe final, pois esta é mesmo fascinante. Tão fascinante como a primeira. Caeiro afirma ainda ser uma criança, que dorme quando o sono chega. O facto de ser como uma criança é o que lhe confere esta alegria de ver. Como a qualquer criança, o mundo é sempre uma descoberta que o fascina. E, como acima referido, ele não dá valor ao pensamento, portanto, e segue o instinto e deixa-se dormir o seu último sono como se fosse o primeiro. E o surprendente é que não se esquece de referir que foi o único poeta da Natureza, com uma certa vaidade e orgulho na sua obra.

Para acabar, refiro o que muito me fascina nesta obra: Caeiro combina três tempos num só poema, mas de forma tão subtil que lhe confere um grande encanto. Se o leitor ainda não reparou, observe o presente nas primeiras cinco linhas, o pretérito perfeito nas restantes sete linhas e um magnífico pretérito imperfeito nas últimas três linhas. É como se este poema fosse escrito em três tempos diferentes. O primeira, num dia vulgar, como o hoje, o segundo no último dia da sua vida, já que se apresenta como uma última confissão, e o terceiro, num dia longínquo, após a sua morte.

Poderei estar enganado, mas, acho que é esta mistura de tempos que lhe confere um encanto distinto de todos os outros poetas que conheço.

3 comentários:

Fátima Inácio Gomes disse...

Belíssima escolha e belíssima abordagem. Gostei do trabalho de pesquisa, de o teres partilhado, e da auntonomia da análise.

Os reparos:
1. atenção à acentuação, obrigaste-me a muitas correcções; lembra-te que "axo" é só no telemóvel!
2. O "terceiro tempo" não existe: continua a ser o pretérito perfeito, "deu", "fechei", "dormi", "fui - daí que esse tempo pos-mortem não exista - existe é o "sono" que "um dia" lhe deu: um eufemismo da Morte.

Tirando estes pormenores, que acima de tudo revelam uma análise honesta e pessoal, está muito bem.
:)

Vitorugo disse...

Bem, agora que a professora explicou, reparo que tem razão. Mas eu tinha a impressão que havia três tempos.

Quanto a acentuação... É o meu problema... ainda não inventaram teclados com as letras acentuadas ;'(

Prometo que se o fizerem, passarei a usa-los... :D

Só uma pequena correcção:
"axo" não é so no telemóvel, mas tambem no msn... é daí que vem o meu habito de o usar, e não do telemóvel, mas não é nada que não se resolva...

P.S.: Acho que agora está tudo acentuado... hehehe

Fátima Inácio Gomes disse...

... não, faltou "usá-los" :P

A "professora explicou" como lhe competia! ;-)